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Um rápido olhar em "O Vampiro Armand"

B"H

Olá pessoas!
Aqui estamos após a leitura de O Vampiro Armand, com uma euforia irreprimida e algumas cores novas na nossa paleta de tintas. Acabei a leitura ontem à noite, muito tarde, de modo que só estou podendo escrever agora. Cuidado ao ler esta resenha porque talvez seja a que contém mais spoillers de todas da série.
Começamos nossa leitura em um momento próximo ao final do último, Memnoch, quando o vampiro Lestat está em estado catatônico, guardado, ou talvez a melhor palavra seja "observado", por seu séquito de amigos  imortais, incluindo alguns dos mais antigos, como a mãe, nova fonte do sangue negro, Marius, Santino e Pandora. Estou propositadamente pulando alguns nomes que, já desde O Vampiro Lestat, venho me segurando para não mencionar. Lestat está na capela do convento que ganhou de Dora, em Memnoch, e o livro já começa nos mostrando Armand vindo visitar o amigo pela primeira vez. Quem leu Memnoch (CUIDADO, SPOILLER) fica muito confuso ao ver Armand lindo e intacto, em sua beleza dos 17 anos, congelada para sempre, com seus longos cabelos vermelhos, sabendo que ele havia se entregado ao sol na manhã em que viu o Véu de Verônica, o sudário que Lestat recebeu do próprio Cristo na Via Dolorosa (ou não, vai saber...). Até então poderíamos supor que a narrativa de O Vampiro Armand poderia ser feita em terceira pessoa ou, talvez o mais provável, fosse uma narrativa mais antiga. Mas não, trata-se de sua própria história, narrada em primeira pessoa para o vampiro que se tornou o novo biógrafo dos imortais, David Talbot.
A história começa com um garoto sendo vendido de um comerciante para outro até chegar à cidade de Veneza, onde foi comprado pelo misterioso Marius Romanus. Amadeo, como foi batizado por Marius, é levado para o palácio do seu novo mestre e coberto de riquezas e amor, muito mais do que seria possível que ele entendesse. É aqui que começa o que, à meu ver, é a narrativa mais erótica e mesmo pornográfica de todos os livros até agora. Amadeo se torna o menino amante de Marius. Se até aqui Anne usou de meias palavras e figuras de linguagem para nos mostrar o relacionamento entre vampiros e humanos e vampiros e vampiros, agora usa os termos universalmente aceitos do erotismo. Veja bem que não estou falando que ela perdeu a estética usada até aqui, não, ou que tenha descido o nível do discurso, de maneira alguma, mas agora as coisas são narradas sem pudores, e é bom atentar para quem está narrando, e como se diferencia dos anteriores, mas isso é conteúdo para outra resenha.
O livro segue mostrando como Amadeo cresce cercado do luxo e do prazer, sendo auxiliado por seus irmãos de pincel (eu criei o termo) já que todos são alunos e aprendizes de Marius, o maior pintor de Veneza. Vemos como o menino recebeu sua educação refinada e requintada, responsável pelo encantamento que o diferencia mesmo de Lestat e Louis, tanto em Entrevista com o Vampiro quanto em O Vampiro Lestat. Mas é imprescindível falar que é exatamente aqui que descobrimos as origens de Armand, e as molas que o impulsionaram à sua natureza religiosa desvairada narrada em O Vampiro Lestat. Armand nasceu Andrei, na cidade de Kiev, Rússia, e se consagrou à um mosteiro de ascetas cristãos que se enterravam vivos até o momento em que Cristo decidisse que iriam morrer. É deste mundo de religiosidade desvairada e maníaca que Andrei é arrancado quando seu pai decide que ele é bom de mais para ter um fim como esse. E é precisamente durante essa viagem que Andrei é capturado e levado como escravo para Veneza, onde se torna Amadeo, e amante de um dos vampiros mais fabulosos do mundo. Mas todos sabemos como a história termina já que lemos nos relatos de Lestat de Lioncourt como Marius foi queimado e o recém transformado Amadeo raptado pela seita vampírica da Congregação Romana, é transformado em Armand, o chefe da última congregação dos servos de Deus e Satan, a Congregação de Paris, que habitava o subterrâneo do cemitério Les Innocents. Mas o livro continua e nos mostra o Armand moderno, após Lestat destruir sua fé e práticas monásticas, o Armand que comandou o Théâtre des Vampires, e posteriormente o Armand que vai até o amigo Lestat ao saber que este estava aterrorizado. Vemos Armand contemplando o Véu de Verônica e sucumbindo ao fanatismo religioso e se entregando ao Sol e descobrindo da forma mais dolorosa que já era velho de mais para morrer.

O que posso falar sobre o livro? É uma leitura bastante diferente de tudo o que Anne nos mostrou até agora. É onírico, mas não como o é Memnoch, e é sensualmente pragmático, mas não como o é Pandora. É um livro à parte que compõe o todo de uma forma perfeita. Resumindo, não é Louis, nem Lestat, nem Pandora, é Armand, e não digo que seja nem Andrei nem Amadeo, mas Armand, com o intelecto forjado por séculos de dor e sofrimento, e de todos o único realmente e profundamente religioso, e não só religioso mas, acima de tudo, cristão ortodoxo. Ao criar o seu universo particular que acolhe a todos sem preconceitos e distinções, Anne nos legou uma paleta de cores à qual sempre acrescenta novas matizes (para usar termos adequados a esse livro). É a narrativa mais sexualmente deslumbrante e que mexe mais profundamente com nossos sentidos, descrevendo uma Veneza colorida, de vários sabores, de vários sons e texturas, uma Kiev de atmosfera austera e dolorida e principalmente uma alma multifacetada e complexa como a de Andrei/Amadeo/Armand, o vampiro por quem é impossível não se apaixonar.
É um livro impossível de ser lido para quem tem problemas com sexualidades não convencionais, e talvez deva ser classificado como "proibido para menores de 18 anos", ou talvez isso seja apenas um exagero meu.

"— Eu já acreditei nisso, sim. Mas, sabe, não era uma convicção baseada na razão e na observação da humanidade como tentei achar que era. Nunca foi , e acabei percebendo, e aí, quando vi exatamente o que era, um preconceito cego, desesperado e irracional, senti de repente que tudo desmoronou completamente. Armand, eu disse essas coisas porque precisava acreditar que eram verdadeiras. Elas eram o próprio credo deles, o credo dos racionalistas, dos ateus, dos lógicos, do sofisticado senador romano que precisava fechar os olhos para as realidades nauseantes do mundo à sua volta, porque se fosse admitir o que via na infelicidade de seus irmãos e irmãs, enlouqueceria. Ele inspirou e continuou, voltando as costas para a sala iluminada como que para proteger as crias do calor de suas palavras, certamente como eu queria que ele fizesse. Conheço história, leio história como outras pessoas lêem suas Bíblias, e não ficarei satisfeito antes de ter desencavado todas as histórias que tiverem sido escritas e forem cognoscíves, e decodificado todas as culturas que tiverem me deixado qualquer evidência tantalizadora que eu possa extrair da terra ou da pedra ou do papiro ou do barro. Mas meu otimismo estava errado, eu era ignorante, tanto quanto acusava os outros de serem, e recusava-me a ver os horrores que me cercavam, mais do que nunca neste século, este século racional, mais do que em qualquer época do mundo. Olhe para trás, filho, se quiser, se quiser discutir a questão. Olhe para a dourada Kiev, que você só conheceu em canções depois que os selvagens mongóis incendiaram suas catedrais e massacraram sua população como se fosse gado, como fizeram por toda a Kiev Rus durante duzentos anos. Olhe para as crônicas de toda a Europa e veja as guerras travadas em toda parte, na Terra Santa, nas florestas da França ou da Alemanha, por toda a fértil Inglaterra, sim, abençoada Inglaterra, e em cada rincão asiático do globo. Ah, por que me enganei durante tanto tempo? Não vi aquelas pradarias russas, aquelas cidades incendiadas? Ora, toda a Europa poderia ter sido conquistada por Gêngis Khan. Pense nas grandes catedrais inglesas destruídas pelo arrogante rei Henrique. Pense nos livros dos maias que os padres espanhóis lançaram no fogo. Incas, astecas, olmecas — povos e todas as nações pulverizados e esquecidos...  Isso tudo são horrores em cima de horrores, e sempre foi assim, e não posso fingir mais. Quando vejo milhões mortos em câmaras de gás por causa dos caprichos de um austríaco louco, quando vejo tribos africanas inteiras massacradas até os rios se coalharem de corpos inchados, quando vejo a fome dizimar países inteiros numa era de abundância insaciável, não consigo mais acreditar nessas banalidades. Não sei o que foi que destruiu minha ilusão. Não sei que horror desmascarou minhas mentiras. Terão sido os milhões que morreram de fome na Ucrânia, presos ali por seu próprio ditador, ou os milhares que morreram depois de envenenados pela radiação nuclear despejada nas pastagens, desprotegidos pelos mesmos poderes governamentais que já os fizera passar fome? Terão os mosteiros do nobre Nepal, cidadelas de meditação e graça que resistiram milhares de anos, sendo mais velhos até do que eu e toda a minha filosofia, sido destruídos por um exército de militaristas gananciosos que fizeram uma guerra implacável contra monges de hábitos cor de açafrão, e atiraram ao fogo livros de valor inestimável, e derreteram sinos antigos que já não mais chamavam os fidalgos para a oração? E isso tudo nessas duas últimas décadas, enquanto as nações ocidentais dançavam nas discotecas e se encharcavam de álcool, lamentando perfunctoriamente o destino triste do remoto Dalai Lama, e trocando o canal do televisor. Não sei o que foi. Talvez tenham sido os milhões — chineses, japoneses, cambojanos, hebreus, ucranianos, poloneses, russos, curdos, ah, meu Deus, a ladainha é interminável. Eu não tenho fé, não tenho otimismo, não acredito nos modos da razão ou da ética. Não o censuro enquanto você está na escadaria da catedral abrindo os braços para seu Deus onisciente e perfeito. Não sei nada, porque sei demais, e não entendo o bastante nem entenderei. Mas você me ensinou tanto quanto qualquer um que conheci, que o amor é necessário, tanto quanto a chuva para as flores e para as árvores, e o alimento para a criança faminta, e sangue para esses animais predadores que se alimentam de carniça famintos e sedentos que nós somos. Precisamos de amor, e o amor pode nos fazer esquecer toda a selvageria, como talvez nada mais possa." (Marius)

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